Vem o Observatório de Violência Obstétrica (OVO PT) reagir às declarações do Diogo Ayres-de-Campos à TSF no dia 23 de Fevereiro 2023, referentes à mortalidade materna de 2020 em Portugal, que muitas mulheres estrangeiras, com “menos cuidados e menos informação“, têm escolhido Portugal para receber cuidados de saúde maternos, o que “tem influência na nossa mortalidade“.
Na continuação dos nossos comunicados de 24 de Maio de 2022, 20 de Julho de 2022 e Manifesto de 13 de Outubro de 2022, referente ao aumento da mortalidade materna, reforçamos que é de extrema importância a recolha de todos os dados relevantes para compreender o que, de facto, está a acontecer na assistência ao parto, sem dissociar da assistência à gravidez e pós-parto.
O OVO PT mais uma vez, vem reiterar a necessidade de que os Grupos de Trabalho/Comissões tenham especialistas de várias áreas e sejam multidisciplinares, incluindo Observadores como por exemplo Associações que representam as Mulheres.
Seria essencial ter presentes elementos do MS/DGS, o próprio Colégio de Especialidade, (que recorrentemente afirma que não têm dados, que desconhecem, que não foram informados), a Ordem dos Enfermeiros que também faz parte e é interveniente no nascer, a existência de um elemento dos Cuidados Primários (médico de família por exemplo) que acompanha esta díade, Ordem dos Psicólogos, que desempenham um fundamental papel tanto à mulher, como à família, fisioterapeutas que assistem em traumas do pavimento pélvico, assim como membros do Observatório de Violência Obstétrica em Portugal, e outras associações que acrescentem valor.
A apresentação do relatório da mortalidade foi durante uma audição na Comissão de Saúde no Parlamento do dia 19 de Julho de 2022, em que a diretora-geral da Saúde, Dra. Graça Freitas, informou o seguinte:
- Os dados provisórios de 2020 sobre a mortalidade materna indicam que 76,3% das mulheres que morreram nesse ano tinham “comorbilidades pesadas” não associadas à gravidez, nomeadamente doenças cardiovasculares, obesidade mórbida e neoplasias, elencou, notando que estes são ainda dados preliminares, e um dos que já foi investigado em detalhe é o de uma mulher que “foi fazer fertilização in vitro ao Brasil aos 55 anos e acabou por morrer em Portugal”.
- As mulheres que morrem durante a gravidez, o parto e o puerpério “tendem a ser mais velhas”, acrescentou, precisando que 52,9% das mortes ocorreram acima dos 35 anos. “Há aqui um envelhecimento da idade da gravidez que é mais notório nas mulheres que morreram”.
- Alguns casos necessitam de “ser bem investigados”, porque poderão ter outras causas, mesmo ocorrendo durante o período de definição de morte materna.
- Adiantou também que 2 dos 17 casos registados em 2020 poderão ter outras causas, pelo que o valor final da taxa de mortalidade materna em 2020 ainda poderá ser alterado.
A mortalidade materna pode ocorrer durante qualquer momento da gravidez, durante o parto ou nos 42 dias seguintes ao parto.
Simultaneamente, as explicações que têm sido apresentadas para o aumento da mortalidade materna são insuficientes e centram o argumento na própria condição da mulher, seja pela sua idade, doenças e, mais recentemente, a sua origem, mencionando-se o “turismo de nascimento“.
De pouco serve informar que 25% das mortes maternas foram de mulheres originárias dos PALOP se não são identificadas as condições em que tais mortes aconteceram, tais como:
- Foram evacuadas ao abrigo dos protocolos existentes? Se sim, desde quando? Quantas pessoas? Qual o acompanhamento?
- São residentes em Portugal em situação legal? Ou seja, são reconhecidos os direitos destas mulheres, assim como o acompanhamento devido na gravidez e pós-parto, sendo que muitas mortes maternas acontecem no contexto de pós-parto?
- Vivem em Portugal, mas por algum motivo não encontram apoio para a regularização da sua situação, vivendo marginalmente sem apoio e orientação?
- A justificação do “turismo de nascimento” é falaciosa, não tendo em conta que há mulheres que vêm parir em Portugal pelos seus meios, sendo instruídas, financeiramente privilegiadas e detentoras de dupla nacionalidade.
O OVO PT sublinha que não tem vindo a ser debatido nos media o facto de que, devido à Pandemia, o nosso país está a ser procurado por nómadas digitais e as suas famílias, o que se reflecte também na percentagem de nascimentos. Apontar o “turismo de nascimento” como razão do aumento da morte materna, focando apenas nas mulheres oriundas de PALOP, sem dados concretos, é, no mínimo, duvidoso.
Os nascimentos de famílias estrangeiras representam mais de 13% do valor total de nascimentos, dados de 2021 (Pordata). Na última década, o valor de nascimentos de estrangeiros tem variado entre 10% e 13%. Estes novos residentes são de várias nacionalidades, sendo maioritariamente oriundos de Espanha, França, Brasil, Índia, Nepal e mais recentemente da Ucrânia (Pordata) .
Por isso, o OVO PT não considera o argumento do “turismo de nascimento” como válido para este aumento de morte materna e infantil. A percentagem tem sido constante, contudo sem dados concretos sobre o contexto destas famílias. Sem mais dados, trata-se apenas de uma opinião e não de uma constatação de factos concretos.
Assim, o OVO PT entende como irresponsáveis as alegações acerca de nacionalidades de mulheres que fazem parte desta estatística, quando não existem dados concretos sobre estas mortes, números e contexto. Tratam-se de especulações acerca da nacionalidade das mulheres, o que o OVO PT considera antiético, não trazendo nenhuma informação relevante ou propostas de trabalho para que se possa entender o fenómeno actual, apoiando e criando um plano de acção urgente.
Do total de cidadãos estrangeiros, o OVO PT percebe que muitos são os que recorrem a serviços privados de saúde, que tiveram um notório crescimento. No ano de 2021, na zona de Lisboa, o aumento de partos em hospitais privados foi de 28,5%. Dentro da fatia de partos em contexto privado, dois terços são cesarianas.
O OVO PT exige mais dados acerca das mortes que ocorreram no seguimento de transferências da saúde privada, para o Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente as causas exactas que motivaram essa transferência. Percebe-se por alguns relatos que chegam a este Observatório, que muitos processos clínicos se encontram com informação falsa, ausência de informação ou as famílias encontram uma enorme resistência à sua entrega, quando os hospitais são os depositários de informação que pertence às famílias, tendo a obrigatoriedade de entregar o processo clínico completo, detalhado e em tempo útil.
Uma fiscalização atenta às unidades de saúde, que o OVO PT compreende NÃO TER ACONTECIDO ENTRE X E Y, deve sempre solicitar amostras destes processos clínicos, que são fundamentais ferramentas de recolha de informação e análise. Questionamos se a par do que acontece com os processos clínicos, o mesmo não se passa com os dados referentes à gravidez, parto e pós-parto, sendo os únicos dados viáveis que podemos observar, os relacionados à morte provenientes do SICO.
Naturalmente, e como o OVO tem vindo a sublinhar, a morte como indicador único, é insuficiente. São necessários mais elementos de análise, para que se torne possível o melhoramento urgente do acompanhamento da gravidez, parto e pós-parto, que tem decaído ferozmente, sendo sempre imputadas culpas e responsabilidades à mulher, e nunca as falhas no acompanhamento.
Urge a responsabilização do sistema, a clarificação das suas falhas, com o objectivo único de melhorar o atendimento aos utentes e famílias.
É urgente a recolha de mais dados que nos permitam compreender a fundo estes fenómenos. A falta de dados leva o OVO PT a questionar se este aumento da morte materna e infantil se prende unicamente com a falta de assistência, ou se também está relacionada com um excesso de intervenção sem justificação clínica, onde a família é exposta a riscos por questões de conveniência e protocolos.
A falta de dados claros e sérios retira das mulheres e famílias uma importante ferramenta para a tomada de decisões conscientes e informadas, ao mesmo tempo que conduz a uma manipulação da opinião das massas sobre dados frágeis e pouco sérios.
É de destacar também, a discrepância entre os dados de várias fontes: INE, SICO, PorData, as rectificações que se perdem na pesquisa, pouca clareza da origem dessas rectificações, gerando confusão e menos transparência dos dados públicos sobre morte materna e infantil.
O relatório que a OMS divulgou a 22 de Fevereiro de 2023, reporta 12 mortes maternas. A DGS reporta 17 mortes maternas, tal como está no site Pordata.
Sabemos que o processo de consulta relativo às estimativas da mortalidade materna foi iniciada por uma comunicação oficial da OMS aos países no dia 25 de Junho de 2021, que os informou do próximo exercício para estimar a mortalidade para os anos 2000-2020 e solicitou a designação de uma pessoa técnica oficial (normalmente dentro do ministério nacional da saúde e/ ou o escritório central de estatísticas) para participar da consulta.
Em Agosto de 2022, os funcionários designados receberam os seguintes itens por e-mail: (i) uma cópia da comunicação oficial do OMS (CL.24.2021, datado de 25 de junho de 2021); (ii) rascunho estimativas e fontes de dados; e (iii) um resumo da metodologia utilizada.
O período de consulta formal começou em 22 de Agosto de 2022 e durou cinco semanas, e o processo foi concluído oficialmente em 30 de setembro de 2022.
As declarações do Dr. Diogo Ayres-de-Campos diz-nos que esta estimativa não está fechada, podendo o número ser inferior, e “o importante é a avaliação cuidadosa de todos os casos”. Segundo o mesmo responsável, há casos relatados nos hospitais que “não são verdadeiras mortes maternas“, estando em curso uma avaliação pormenorizada da Direção-Geral da Saúde.
Gostaríamos então de que a DGS se pronunciasse relativamente a este relatório e aos dados existentes referentes à mortalidade materna de 2020. E de como ter efectivamente um reporte transparente e credível na Saúde Materno Infantil.
Mantemos, mais uma vez, total disponibilidade para o diálogo com qualquer organismo público, para que consigamos ter total transparência na realidade da saúde materna em Portugal, dando prioridade máxima à autodeterminação da mulher, nunca violando a sua recusa ou consentimento informados, preservando todos os direitos já consagrados pela legislação portuguesa, à mulher e família que recorra aos serviços de saúde em todo o país.
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2023