Face às recentes notícias publicadas pelo Diário de Notícias, referente ao impedimento de uma Mulher poder fazer uma Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) no Serviço Nacional de Saúde, vem o Observatório de de Violência Obstétrica em Portugal (OVO PT) destacar:
Até 1984, o aborto era proibido em Portugal.
A Lei nº 6/84 veio permitir a interrupção voluntária da gravidez em casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em casos de malformação fetal ou quando a gravidez resultou de uma violação.
Em 1997 a legislação foi alterada (Lei n.º 90/97), com um alargamento do prazo para interrupção em casos de malformação fetal e em situações de “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher”.
Apenas em 2007, e após um Referendo nacional, foi incluída na lei a possibilidade de se realizarem interrupções de gravidez a pedido das mulheres. Em resumo, com a Lei nº 16/2007 (e o artigo 142º do Código Penal) a interrupção da gravidez pode actualmente ser realizada em estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos desde que:
a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;
e) Por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.
O OVO PT apontou holofotes para a IVG e IMG em contexto de Violência Obstétrica, não no sentido exclusivo da violência no trato, mas também no total poder de uma classe em retirar direitos às mulheres. Falamos em concreto dos casos de objectores de consciência que, por filosofias pro-vida, colidem com o direito consagrado na legislação portuguesa que celebra 16 anos.
Em 2007, perante a conquista do direito de IVG, o Governo aponta a necessidade da Ordem dos Médicos retirar do seu código deontológico a expressão “o aborto constitui uma falta deontológica grave” tendo o então presidente afirmado que “os médicos têm o direito de manter a sua própria opinião” acrescentando que “o Código só pode ser modificado pelos médicos e não pelo ministro da Saúde.”.
A discussão deste tema culmina com uma mudança no código deontológico, que apenas em Setembro de 2008 (mais de um ano depois da consagração do direito ao aborto), permitiu a IVG, deixando ao critério de cada um “quando começa a vida humana”.
A Objecção de consciência reflecte-se em opiniões que oprimem direitos.
Mulheres que procuram uma IVG e são confrontadas com:
- total ausência de possibilidade de realizar a interrupção por toda uma equipa objectora;
- bullying;
- procrastinação da IVG (exigir que a mulher ouça o coração do bebé, pedir para reconsiderar, etc…) até passar o prazo das 10 semanas, obrigando a mulher a gestar, parir e cuidar de um bebé, contra a sua vontade (independentemente de motivos económicos, psicológicos, sociais, ou de outra natureza).
Nas IMG:
- profissionais que procrastinam consultas ao ponto de ultrapassar as 25s;
(Neste ponto, devemos refletir sobre todos os cenários possíveis, em dar à luz um bebé com necessidades exigentes para se adaptar à vida; dependência de sondas, equipamento médico, disponibilidade de um cuidador informal, cuidados médicos especializados e permanentes, etc…) - ocultação de problemas graves, com o intuito de fazer a mulher levar a gravidez a termo;
- risco de vida para a mulher;
- perda de qualidade de vida da mulher;
não autorização explícita da IMG, resultando em bebés com vidas totalmente dependentes, cuidadores informais e todo o impacto que traz à vida das famílias.
A lei em Portugal existe, e nenhuma mulher pode ver os seus direitos retirados por questões filosóficas, não podendo nenhum serviço retirar esses direitos às mulheres, incorrendo na prática de violência obstétrica!
Nenhum serviço público ou privado, pode funcionar sem profissionais que garantam o cumprimento da lei, não garantido o exercício dos direitos de utentes;
Médicos objectores de consciência não devem prestar serviço em equipas obstétricas de hospitais públicos ou privados, trabalhando num regime de selecção conforme o juízo pessoal sobre utentes que careçam do seu apoio, tornando os serviços discriminatórios e elitistas, colocando em risco a saúde pública;
Apesar de em Portugal se praticar o modelo biomédico e tecnocrático, o médico obstetra não é – nem deve ser – o único profissional de saúde que participa na vigilância da gravidez e na assistência ao parto e ao pós-parto, assim como IVG, IMG, perda gestacional, etc.
Entende também o OVO PT que devem existir regras iguais para o Serviço de Saúde Pública e para a Saúde Privada, sem que existam hospitais que tenham o descaramento de negar uma IVG afirmando-se pro-vida ou amigos do bebé, seguindo um perigoso caminho sobre a personalidade jurídica do feto, obrigando as mulheres a vários cenários de opressão, como:
- Interrupção mediante pagamento de quantias avultadas, pondo em risco a salubridade do serviço, assim como a qualidade médica, em consequência da fraca vigilância destes serviços e possíveis situações de clandestinidade;
- Recorrer a meios rústicos (como ingestão de substâncias perigosas, a técnica “do cabide”;
- deslocação de muitos km para ter acesso a uma Interrupção, nomeadamente para outros países, para unidades clandestinas que prestem serviços de ivg;
- etc….
O OVO PT vai lutar para a exposição pública destes casos, pela luta para que uma lei que vigora há 16 anos, seja realmente cumprida em pleno.
O OVO PT sublinha que o poder se encontra nas mãos dos profissionais, o que se traduz numa atroz falta de autonomia das mulheres no exercício das suas liberdades, excluindo por completo o direito básico da autodeterminação.
Considerando que
- a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, incluindo a prestação de cuidados seguros e legais em matéria de aborto, constituem um direito fundamental;
- que retardar e recusar o acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos constitui uma forma de violência contra as mulheres e as raparigas;
- que estas restrições e proibições não reduzem o número de abortos, mas apenas obrigam as pessoas a percorrer longas distâncias ou a recorrer a abortos perigosos, tornando-as também vulneráveis e afetam as pessoas que mais carecem de recursos e informações; e de forma desproporcionada, as mulheres em situação de pobreza, sobretudo as mulheres categorizadas em função da etnia, nomeadamente as mulheres negras, e de outras comunidades, bem como as mulheres provenientes de zonas rurais, as pessoas LGBTIQ, as mulheres com deficiência, as adolescentes, as mulheres migrantes, incluindo as migrantes em situação irregular, e as famílias monoparentais a cargo de mulheres;
- que os serviços públicos de aborto podem proporcionar um acesso universal ao aborto seguro e legal para todas as mulheres, nomeadamente as mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconómica;
É de extrema importância a consciência de que entre as adolescentes com idades compreendidas dos 15 aos 19 anos, as complicações ligadas à gravidez e ao parto são a principal causa de morte a nível mundial; é significativamente mais provável que as mães adolescentes interrompam os seus estudos e se confrontarem com situações de desemprego, agravando desse modo o ciclo da pobreza;
Apesar do progresso geral em matéria de protecção da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos em todo o mundo, incluindo na Europa, um retrocesso no direito de acesso a um aborto seguro e legal é uma preocupação grave;
A Polónia é o único Estado-Membro da UE que retirou da sua legislação um motivo para o aborto, dado que o ilegítimo Tribunal Constitucional decidiu, em 22 de outubro de 2020, reverter os direitos há muito estabelecidos das mulheres polacas, o que implica uma proibição de facto do aborto;
- Em Malta, o aborto é proibido;
- O aborto médico durante as fases iniciais da gravidez não é legal na Eslováquia e não está disponível na Hungria;
- O acesso ao aborto está a degradar-se em Itália;
- acesso aos cuidados relativos ao aborto estão a ser negados noutros Estados-Membros da UE, tal como recentemente na Croácia;
O OVO PT está profundamente preocupado com o facto de que as proibições, e outras restrições em matéria de aborto estejam a afectar as vidas, liberdades e autodeterminação de mulheres. E que, devido a obstáculos financeiros ou logísticos, não possam viajar e recorrer a clínicas de saúde reprodutiva ao países vizinhos, correm um maior risco de serem submetidas a procedimentos inseguros e sob risco de vida, e de serem obrigadas a manter a sua gravidez até ao termo contra a sua vontade, o que constitui uma violação dos direitos humanos e uma forma de violência baseada no género .
O OVO PT exige o cumprimento cabal da lei em vigor, incluindo que os organismos que tem de fazer a sua fiscalização e actuar de acordo com o que está na lei, não sejam coniventes com os objectores de consciência que existem em Portugal na área da saúde, quer sejam médicos quer sejam enfermeiros.
- Apelamos à coragem para abordar directamente o quão são afectados os serviços de saúde pública, devido a filosofias e movimentos pro-vida, o que acreditamos ser uma questão de extrema importância na obstetrícia, mas também em todo o espectro da saúde em Portugal
Mantemos, mais uma vez, total disponibilidade para o diálogo com qualquer organismo público, para que consigamos ter total transparência na realidade da saúde materna em Portugal, dando prioridade máxima à autodeterminação da mulher, nunca violando a sua recusa ou consentimento informados, preservando todos os direitos já consagrados pela legislação portuguesa, à mulher e família que recorra aos serviços de saúde em todo o país.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2023
Mulheres*=pessoas que vivam ou tenham vivido na pela as mesmas opressões, sejam mulheres (trans ou cisgénero), homens trans ou pessoas não binárias.